Sei
que inverti a ordem das coisas quando falei primeiro da Barbera da
Angheben para só depois escrever sobre o trabalho da vinícola. De
qualquer forma, esse é o tema do post de hoje. Encarei essa viagem
como de estudos, digamos assim, de observações técnicas. Meu objetivo
era conversar com produtores, entender a realidade dos pequenos e
provar vinhos difíceis de encontrar aqui em São Paulo.
Por
isso, mandei um email com antecedência e reservei meu horário na
agenda do Eduardo, filho do Idalêncio, aquela figura cultuada entre
os que fazem vinho, como comentei no texto anterior. Ele fez parte da
3a turma do 1o curso brasileiro de Enologia, que concluiu seus
estudos no final da década de 1950. O curso apenas formalizava
sua prática profissional, já que Idalêncio cresceu no parreiral
entre os vinhateiros da família, gente vinda da região hoje
conhecida por Trento - na fronteira da Itália com a Áustria - e que
de lá trouxe a cultura do vinho e das vinhas.
Idalêncio
está aposentado da atividade de professor de viticultura do Centro
Federal de Educação Enológica de Bento Gonçalves, onde lecionou
por 33 anos. Nesse período, dividiu seu tempo entre vinícolas como
Chandon e Aurora e ganhou a fama que até hoje o acompanha. Depois de
décadas trabalhando para terceiros, em 1999 ele resolveu colocar-se
à prova e estampar numa garrafa seu sobrenome. Dois anos depois, o
mercado conheceu o primeiro rótulo da Angheben: um corte de Cabernet
Sauvignon (45%), Merlot (45%) e Tannat (10%).
Como
Idalêncio ainda está na ativa, se revezando entre a Angheben,
palestras e consultorias, cabe ao Eduardo a tarefa de tocar os
negócios da marca e o dia a dia da vinícola. Às 9h de um sábado,
lá estava eu e três amigos na pequena cantina de onde saem os
vinhos especiais dos quais vou falar.
A
Angheben poderia produzir 300 mil litros por ano, mas utiliza apenas
50% dessa capacidade, e não tem intenção de crescer. Não quer
colocar em risco a qualidade que tanto preza. Foi por isso que todos
aqueles tonéis de aço inox ficaram ociosos para a safra de 2009.
Como as uvas colhidas aquele ano não atingiram o padrão esperado,
foram vendidas para terceiros.
Os
vinhedos próprios da Angheben ficam longe de onde as uvas são
vinificadas, em Bento Gonçalves. Eu sempre ouvi dizer que bons
vinhos são feitos de uvas plantadas ao lado da cantina. Mas o
Eduardo garante que transporte adequado, criterioso, à noite, de
uvas absolutamente sadias e maduras são soluções para a
possibilidade de contaminação ou de fermentação prematura.
O
legal dessa história toda é que a Angheben está amadurecendo junto
com seu vinhedo. As terras de Encruzilhada do Sul, distante 250 km de
Bento, não têm tradição vitivinícola e só começaram a ser
exploradas 14 anos atrás, justamente por Idalêncio. Ele e o filho
Eduardo vinham pesquisando as potencialidades da região desde 1996,
também baseados em documentos 30 anos anteriores àquela data.
Quando recebeu da Chandon a incumbência de buscar alternativas aos
caros hectares da Serra Gaúcha, Idalêncio provou que a escolha por
Encruzilhada não seria uma aventura. Implementou ali os vinhedos da
multinacional de espumantes, mas enxergou para aquela terra outras
vocações, em especial para tintos e brancos mais ácidos.
Essa constatação acabou por definir o caminho a ser trilhado pela
Angheben.
Para
leigos como eu uma empreitada dessas poderia soar imprudente, se
considerada a inexistência de referências anteriores. Mas estamos
falando de dois estudiosos do tema, que não apenas fazem vinhos, mas
entendem de terra, de videiras e de como o clima interfere sobre
esses fatores. Não por acaso, a Angheben a plantou em Encruzilhada
cultivares pouco convencionais para o Brasil. Vejam os vinhos que
provei:
Gewürztraminer
- Doze horas de maceração com as cascas a baixas temperaturas,
para frear o início da fermentação. O objetivo é dar estrutura e
complexidade ao vinho, mas sem extrair cor nem taninos. Mineral e
floral, chega a lembrar os aromas da moscatel. Uma ardenciazinha no
nariz me lembrou dedo-de-moça. Acidez alta, delicado, gostoso.
Pinot
Noir 2012 - Morango no nariz e na boca e taninos macios. Muito
leve e fácil de beber. 10% do vinho passou por carvalho americano,
que deu a ele um toque de baunilha e domou sua adstringência. Um
tempão depois, senti na taça aromas de erva mate seca, e defumada!
Barbera
2012 - falei no post anterior
Touriga
Nacional 2008 - tantas coisas que tenho medo de falar besteira.
Mas vamos lá: couro, guache (esse, admito, influenciada pela
percepção do enólogo), balsâmico, algo de vegetal e alguma flor
que não soube identificar qual, e que também senti ao beber o
vinho. Acidez alta, adstringência média/alta. 50% do vinho
descansou em madeira por sete meses. Para o meu gosto, só tem a
ganhar com mais tempo de masmorra. Lá em Portugal, os patrícios que
provaram a versão brasileira preferiram, claro, os feitos na
terrinha.
Em compensação, os pesquisadores do Instituto San Michelle, do Trento, referência em educação e pesquisa de uva e vinho, rasgaram elogios ao Teroldego 2008, surpresos por ele ser mais encorpado do que os feitos na Itália. Eu também gostei! É intenso na cor, concentrado, com taninos aveludados. Exala notas de tabaco, couro, ameixa preta e baunilha. Precisa de um prato gordo para domar sua adstringência. Tenho mania de guardar um pouco do vinho para revisitá-lo na taça mais tarde, em busca de surpresas. E esse Teroldego ganhou notinhas de cacau. Ele e o Barbera são os vinhos mais prestigiados e comentados da vinícola. Quando abrir, posto um texto com foco na harmonização.
A
referência da Angheben está no Velho Mundo, mas sem a pretensão e
o objetivo de fazer algo parecido com o que se produz lá. Muito pelo
contrário. Quer ser conhecida aqui pelas diferenças, peculiaridades
e detalhes. Que história nova a vinícola construiria replicando
vinhos de castas internacionais já tão massificadas mundo afora?
Num
próximo post vou falar de um vinho secreto, ainda em fase de teste,
que o Eduardo serviu pra gente, em primeira mão!
Roberta Pakas
Roberta Pakas